Ainda no início do mês de setembro foi liberado pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) o acesso a parte dos documentos do processo que visa à regulação, no que cabe àquela Agência, da Lei 14.300/2022, conhecida como o Marco Legal da micro e minigeração distribuída.
Tomou-se então conhecimento da Nota Técnica n° 0041/2022- SRD/SGT/SRM/SRG/SCG/SMA/SPE/ANEEL (“NT 0041/2022”), elaborada em conjunto pelas superintendências da ANEEL, com “Proposta de abertura de Consulta Pública com vistas a obter subsídios para o aprimoramento das regras aplicáveis à micro e minigeração distribuída”, conforme descrito em seu assunto.
Trata-se, de fato, apenas de proposta de regulação sobre alguns aspectos da Lei 14.300/2022, que deverá ser ainda submetida à Diretoria da Agência para somente depois poder ser efetivamente objeto de contribuições por parte dos agentes e demais interessados.
Nessa etapa, vale lembrar que, a depender das contribuições, a proposta poderá ainda sofrer alterações, chegando-se, aí então, quando do encerramento da consulta pública, ao seu produto final.
Inobstante a natureza de mera proposta, já há quem esteja – e não sem razão – preocupado com os indícios do caminho que a Agência poderá seguir com relação a alguns dos temas contemplados no referido marco legal.
Essa preocupação, a bem da verdade, muito se liga à interpretação que as áreas técnicas da ANEEL tiveram a respeito das previsões contidas na Lei n. 14.300/2022, sendo algumas inclusive distantes da leitura inicial dos consumidores afetados e aparentemente da própria intenção originária do legislador.
Exemplo disso – e que serve de razão para o presente artigo – é o que consta da proposta acerca do desconto no valor mínimo faturável/custo de disponibilidade para o microgerador com compensação no mesmo local da geração, com potência instalada de até 1,2 kW.
Para esse consumidor/microgerador, conforme disposto no §2º do art. 16 da Lei 14.300/2022, deveria ser aplicado desconto de até 50% no custo de disponibilidade, conforme regulação da ANEEL. Vale ver exatamente o que constou do texto da lei:
Art. 16. Para fins de compensação, a energia injetada, o excedente de energia ou o crédito de energia devem ser utilizados até o limite em que o valor em moeda relativo ao faturamento da unidade consumidora seja maior ou igual ao valor mínimo faturável da energia estabelecido na regulamentação vigente.
[…]
- 2º O valor mínimo faturável aplicável aos microgeradores com compensação no mesmo local da geração e cujo gerador tenha potência instalada de até 1,2 (um quilowatt e duzentos watts) kW deve ter uma redução de até 50% (cinquenta por cento) em relação ao valor mínimo faturável aplicável aos demais consumidores equivalentes, conforme regulação da ANEEL.
Na NT 0041/2022, entretanto, fez-se constar proposta de redução nula (igual a 0), tendo em vista o entendimento de que:
(a) a redução no custo de disponibilidade representaria uma realocação ineficiente de custos, já que ela não refletiria em redução de custos do serviço, que seria então arcado pelos demais consumidores;
(b) do ponto de vista técnico, que incumbe à ANEEL considerar para regular, não haveria razão para diferenciar os usuários abrangidos pelo texto da lei dos demais consumidores, sendo todos semelhantes e causando impactos parecidos; e
(c) não há definição de Política Pública que oriente a ANEEL a prestar redução sem razão técnica.
Segundo a NT, uma vez que o custo de disponibilidade definido para os consumidores do Grupo B consiste em forma de garantir faturamento mínimo, assegurando remuneração mínima pela prestação do serviço e sinalizando aos consumidores sobre a existência de custos fixos, e diante do fato de que não há razão técnica que permita diferenciar os microgeradores com compensação no local da geração e com potência de 1.200 W dos demais consumidores do Grupo B, caberia à ANEEL simplesmente não aplicar redução alguma sobre o custo de disponibilidade.
Para tanto, foi considerada a possibilidade de variação do desconto, com limite máximo de 50% e com limite mínimo de 0% – que corresponde, obviamente, a um não desconto.
A esse respeito, constou da NT que a ANEEL, ao fazer isso, estaria “levando em consideração o princípio da modicidade tarifária e a prudência na aplicação desse comando legal para os demais consumidores que não possuem microgeração e que já estão sendo onerados com outros subsídios trazidos nessa mesma Lei.”
É preciso notar, todavia, que a denominada prudência na aplicação do comando legal, se adotada tal como proposta na comentada Nota Técnica, acabaria por representar verdadeiro afastamento do comando legal, resultando na própria ilegalidade do ato da Agência.
Não se trata de questionamento à posição da ANEEL acerca dos aspectos técnicos da questão, que, se não o foram, deveriam ter sido levados em conta no momento da elaboração da lei.
Trata-se, antes disso, da impossibilidade de a Agência ir de encontro à intenção do legislador e afastar por completo desconto que, embora não fixado, foi efetivamente previsto e estabelecido como forma de tornar mais atrativa e/ou facilitar o acesso à microgeração de energia por uma parcela de consumidores do Grupo B.
Nesse sentido, é oportuno destacar que a previsão do desconto de que ora se trata, assim como outras previsões de mesma razão e objetivo, foi expressamente justificada pelo relator do projeto de lei que deu origem à Lei 14.300/2022, que em seu parecer (parecer n. 6, de 17/08/2021) assim explicou:
“Ao longo do mês de julho do ano corrente o Ministério de Minas e Energia promoveu um conjunto de reuniões com a presença de técnicos da Aneel, do próprio Ministério, associações ligadas a energia solar e da Abradee com o intuito de ajustar o texto do substitutivo apresentado de forma a atingir um consenso de todos. Ao final o consenso foi conquistado tendo as seguintes premissas principais: a democratização do acesso a geração solar por meio da retirada da cobrança de taxa de disponibilidade; a garantia da remuneração do pagamento do uso do fio para as concessionárias e, por fim, a valoração econômica dos atributos positivos da MMGD incluindo os locacionais, bem como os seus custos sistêmicos, e a posterior compensação entre ambos para a construção de nova tarifação que passará a vigorar após um período de transição de seis anos” (destacou-se e grifou-se)
A intenção do legislador, acompanhada do histórico do projeto de lei, restou clara e deve ser considerada pela Agência em sua interpretação do §2º do art. 16 da Lei 14.300/2022, haja vista que, como se sabe, não se deve ter em conta apenas o conteúdo literal da lei, devendo ser feita também a sua interpretação justamente com base no seu histórico e na sua teleologia.
Diante disso, a despeito das razões de ordem técnica de que se vale, não é, definitivamente, competência da ANEEL a escolha quanto à aplicação ou não do que previu a Lei, o que ocorrerá se considerada possível a fixação do desconto em 0% por força de norma infralegal.
A lei, afinal, atribuiu à Agência apenas a definição do percentual do desconto – algum desconto, e não 0% de desconto -, e não a decisão sobre a sua incidência ou não para o grupo de consumidores definido naquele §2º do art. 16 da Lei 14.300/2022.
De outra forma, eventual regulação da ANEEL que afaste por completo o desconto sobre o custo de disponibilidade poderá ter a sua legalidade questionada, por extrapolar o comando legal.